Intolerância e desinformação: como o ódio viralizou no Brasil

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Números sugerem que intolerância e desinformação se naturalizaram na internet brasileira. O que antes seria denunciado, hoje é curtido e compartilhado

 

Por Fernanda Pugliero

Nos últimos 11 anos, quase 4 milhões de denúncias relacionadas a crimes de ódio na internet foram recebidas pela Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos. Isso significa que, por dia, pelo menos 2,5 mil páginas contendo evidências de crimes como racismo, neonazismo, intolerância religiosa, homofobia, incitação de crimes contra a vida, maus tratos a animais e pedofilia foram denunciadas no Brasil.

Mas não é esse o dado que mais surpreende. Em 2016, o número de denúncias ultrapassou 115 mil, enquanto em 2017, despencou quase pela metade, para pouco mais de 60 mil. No primeiro ano da série histórica, 2006, o total de denúncias ultrapassou 350 mil, o que demonstra uma banalização do ódio nos últimos anos.

“De 2016 para 2017 houve queda no número de denúncias. Mas isso não quer dizer que o ódio na internet diminuiu. Pelo contrário, ele aumentou, mas hoje as pessoas não se indignam mais”, aponta Thiago Tavares, presidente da Safernet Brasil, primeira ONG do país a criar um canal anônimo para receber denúncias relacionadas a crimes de ódio on-line.

Para ele, o Brasil vive um momento atípico, no qual o ódio se naturalizou e é, inclusive, utilizado como plataforma política. “Hoje existe uma chapa presidencial que alimenta o ódio, o preconceito e a discriminação para captar votos e espaço na mídia”, ilustra Tavares.

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Apesar da quantidade de conteúdo de ódio circulando nas redes ser crescente, há cada vez menos pessoas dispostas a denunciar. “Muito conteúdo que antes seria denunciado, hoje é curtido, compartilhado e viraliza. Muitas pessoas que antes se indignavam com conteúdos que pregam o racismo, hoje ajudam a disseminá-lo a partir da interação nas redes sociais”, complementa.

A estratégia das autoridades brasileiras para conter a disseminação do discurso de ódio nas redes é semelhante à utilizada na maioria dos países do mundo e consiste em três passos.

Primeiro precisa ser recebida a denúncia (que pode ser feita anonimamente online e é encaminhada ao Ministério Público, que decide sobre a investigação e instauração de inquérito); depois é solicitada a remoção do conteúdo (Facebook, Google ou outra plataforma são informados sobre a existência da página e a apagam); e por último ocorre a responsabilização do autor da postagem (o crime de racismo, que corresponde a 28% das denúncias, é inafiançável e imprescritível no Brasil).

O maior problema, entretanto, é que a taxa de responsabilização em geral, para crimes relacionados não só a ódio, mas também à violência, é residual. Em 2017, dos 63.880 homicídios em território nacional, apenas 7% foram esclarecidos e somente 3% resultaram em sentença condenatória.

“Há um processo de radicalização em curso, sobretudo da juventude, e há uma crescente polarização da sociedade”, comenta o presidente da Safernet.

Em janeiro deste ano, a ONG lançou um projeto voltado para jovens de 16 a 25 anos para combater a disseminação do discurso de ódio na Internet a partir de contranarrativas. “Precisamos produzir conteúdos que também viralizem, mas que promovam a igualdade e os Direitos Humanos”, diz Tavares.

A proposta, em parceria com o Google e o Unicef, já percorreu quatro das cinco regiões do país e premia com bolsas no valor de R$ 12 mil para tirar do papel projetos voltados a grupos sociais vulneráveis, como mulheres, negros e índios.

As redes sociais como propagadoras

As redes sociais facilitaram a replicação de informações de modo escalável. Com isso, proporcionaram uma infraestrutura para que as pessoas repliquem discursos, muitas vezes sem uma posição crítica. Até 2012, o Orkut, extinto em 2014, hospedava o maior número de páginas denunciadas por crimes cibernéticos. A partir de 2012, esse trono passou a ser ocupado pelo Facebook.

Para a pesquisadora de redes sociais Raquel Recuero, é muito mais fácil replicar um discurso em um momento de raiva, sem que se veja, diretamente, quem é o outro para quem se fala ou agride. A falta de contexto dá combustível a esse processo.

“Na vida offline, há sempre um contexto que traz as informações necessárias para evitar conflitos e modular uma conversa. Tem coisas que a pessoa diz para os amigos da academia que não diz para os amigos do trabalho”, explica. Em espaços como o Facebook, haveria uma confusão dessas redes de contatos e dos espaços. “Isso significa que publicações são feitas com um determinado público em mente, mas são lidas por outros públicos. Isso gera problemas de contexto e comentários inadequados”.

Ferramenta recente, os bots (diminutivo da palavra “robot”, softwares que simulam ações humanas) trabalham pela disseminação de discursos de ódio, replicando as postagens e, dessa forma, ampliando seu alcance.

“A tendência é que os ânimos fiquem mais exaltados nessas eleições e que as pessoas briguem mais por causa do contexto polarizado. Apesar disso, já há certo escaldamento, pois muita gente já silenciou pessoas com as quais não concorda”, afirma a pesquisadora. “Embora a violência discursiva possa ampliar-se dentro dos grupos, não sabemos se circulará.”

O pelourinho moderno

Mulheres negras de classe média entre 20 e 35 anos e com ensino superior completo são os principais alvo de ataques racistas via Facebook no Brasil. Pelo menos 81% das vítimas do ódio virtual têm esse perfil, de acordo com um estudo recém-concluído pelo pesquisador brasileiro Luiz Valério Trindade, PHD em Sociologia pela Universidade de Sounthampton, na Inglaterra. “Grande parte dessas mulheres ascendeu socialmente ocupando espaços sociais que são associados a privilégios ou ambientes predominantemente brancos ou masculinos”, explica o pesquisador.

Para chegar a essa conclusão, Trindade analisou 109 páginas do Facebook e 16 mil perfis de usuários da rede social durante três anos e meio. O levantamento incluiu também 224 artigos jornalísticos que abordaram casos de racismo nas redes sociais brasileiras entre os anos de 2012 e 2016, inclusive o da jornalista da Rede Globo Maria Júlia Coutinho, que foi vítima de ataques raciais nas redes sociais em julho de 2015, e das atrizes Sheron Menezes e Taís Araújo.

A maior parte das vítimas não se sente confortável em denunciar os ataques. “Diante de uma situação de ofensa racial, a classe social exerce um papel fundamental na hora de denunciar”, aponta. Nos ataques dirigidos a celebridades, segundo Trindade, o tempo de identificação dos agressores pela polícia e posterior denúncia pelo Ministério Público não ultrapassa mais que 6 meses. “Em casos no qual a vítima é uma pessoa humilde e de classe social mais baixa, ela acaba desencorajada na delegacia a prestar queixa”.

Além de identificar o alvo principal do discurso de ódio, a pesquisa também constatou que 65,6% dos usuários que disseminam intolerância racial no Facebook são homens na faixa dos 20 e poucos anos.

“A crença de que o que as pessoas fazem online não tem impacto off-line é tão forte que muitos desses ofensores imaginam estarem protegidos pela tela dos computadores. A partir do momento em que os ataques virtuais entram no radar de um meio de comunicação, os ofensores tomam uma atitude para se desvencilhar da ofensa”, afirma Trindade.

Entre as possíveis ações para “limpar a barra” está a exclusão da postagem, da conta na rede social, a alteração do status do perfil de público para privado ou a alegação de que a ofensa se tratou apenas de uma brincadeira. “Isso sinaliza que aquela pessoa tinha consciência de que o que ela estava fazendo não era apropriado”, conclui o pesquisador.

Em vez de educação, smartphone

Sem tradição de debate na esfera pública, boa parte da população brasileira só começou a participar do debate público de ideias quando teve acesso à internet. O maior problema, talvez, seja que essa inserção não se deu através de um processo educacional, mas pela compra de smartphones.

“Sem experiência de debate, a população começou a acessar a internet sem se preocupar com os limites da sua atuação”, opina o jornalista e doutor em Ciências Políticas e professor da PUC-SP Leonardo Sakamoto.

Ele também é autor do livro O que aprendi sendo xingado na internet, que explica, por exemplo, como funciona o padrão de distribuição de informação on-line e alguns dos processos que facilitam o divisionismo de opinião. Desde 2015, ele afirma ter sofrido milhares de ataques virtuais e também no mundo real.

Os episódios estão ligados com sua atuação na rede – Sakamoto também é blogueiro e diretor da ONG Repórter Brasil, especializada em comunicação e projetos sociais. “Começaram a divulgar que eu recebia dinheiro do governo e que a organização da qual participo há 17 anos não exista. Esse tipo de informação falsa se dissemina e, um dia, você acaba sendo cuspido na rua, derrubado ou perseguido em supermercados”, lamenta. “As pessoas sempre deixam claro o porquê de estarem fazendo isso.”

A experiência de Sakamoto revela a estreita ligação entre notícias falsas e a disseminação do discurso de ódio. “O debate anônimo, sem fontes, desqualificado e que visa a desinformação na internet é um grande formador de opinião no Brasil. As pessoas não se preocupam com a qualidade daquilo que consomem e do que repassam desde que o conteúdo vá ao encontro daquilo que elas acreditam”, analisa. Ele compara o conteúdo online a um pedaço de carne. “No mercado, você olha o que está comprando, pergunta a procedência, sente o cheiro e toca. Na internet, o conteúdo é consumido olhando apenas a embalagem.”

Para ele, o fenômeno dos “fake news” é apenas a ponta do iceberg de um sistema de desinformação. “As pessoas acham que notícia falsa é qualquer mentira. E daí aparece gente como Donald Trump utilizando esse conceito para menosprezar ou reduzir a importância dos veículos de comunicação e da mídia como um todo”, aponta.

No conceito acadêmico, “fake news” são publicações que viralizam em rede social a partir de informações comprovadamente falsas com formato que simula o estilo jornalístico com o objetivo de enganar o publico ocultando a sua autoria. “Mas as pessoas não sabem a diferença entre notícia e opinião. O problema é anterior às ‘fake News’, pois as pessoas não sabem o que é ‘news’ e isso atrapalha porque o público acha que algo é mentiroso porque não concorda com uma opinião.”

Criar uma legislação para combater a propagação desse tipo de conteúdo, entretanto, não parece ser a solução. “O governo brasileiro não pode criar uma lei dizendo o que é noticia falsa. Se o fizer, é como se definisse o que é verdade e o que é mentira. Isso é o começo do fim de qualquer democracia”, observa. “Grandes empresas como Facebook e Google também não podem definir o que é verdade e o que é mentira”, pondera Sakamoto.

Ele defende que a qualificação do debate público é a saída mais sustentável. “Em países como a Alemanha, as pessoas estão mais preparadas para o debate público, e o medo de consumir notícias falsas é menor. No Brasil isso não acontece. Se a gente tivesse um debate público mais qualificado, nós evitaríamos a propagação de ódio, intolerância e a desinformação”, opina.

 

Fonte: DW


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