De marajá a parasita: dia da servidora pública em 2020

De marajá a parasita: dia da servidora pública em 2020
Por: Elenira Vilela Professora do Instituto Federal de Santa Catarina, líder sindical e do Partido dos Trabalhadores em Santa Catarina
Originalmente para o Brasil 247

 

Servidoras públicas não são marajás (quem tem aviões e torneiras de ouro são banqueiros e donos de multinacionais, né?), muito menos parasitas. Precisam ser respeitadas e ter condições de exercer suas funções independentes de quem ganhou as eleições 

Inicialmente um esclarecimento: este artigo não pretende se referir apenas às mulheres que atuam ao serviço público. A opção pelo gênero feminino advém do fato de que 60% de quem atua no serviço público brasileiro são mulheres e assim sendo é mais justo subsumir os demais gêneros no feminino e não o contrário. O texto fica meio chato se escrevemos servidores, servidoras e servidorus para incluir pessoas de todos os gêneros. Penso que aproveitamos para os homens exercitarem a vivência de terem que se sentir incluídos numa linguagem que especifica outro gênero e pressupõe que ele se inclui.

O “Dia do Servidor Público” foi instituído a partir de um decreto de Getúlio Vargas em 1939 e a data foi escolhida porque em 28 de outubro de 1936 (há fontes que informam que foi em 1937) foi criado o Conselho Federal do Serviço Público Civil.

O serviço público brasileiro existe desde o Império. Mas tem três momentos: a República Velha, a Ditadura e a Nova República a partir da Constituição de 1988. A partir da Constituição Cidadã é que servidoras públicas passam a ter o Regime Jurídico Único que estabelece direitos e deveres.

Essa semana um senador resolveu afirmar que a Constituição prevê muitos direitos e poucos deveres, isso não se aplica nem ao cidadão comum, mas certamente não às servidoras públicas. Servidoras públicas tem muitas obrigações estabelecidas em lei, como, por exemplo, ter que solicitar ao órgão a quem estão associadas autorização para sair do país quando não estão de férias. À gestora e às servidoras públicas só é permitido fazer em serviço o que está previsto em lei, quando aos demais cidadãos a lei apenas estabelece limites do que está proibido e todo o demais sendo permitido.

É bom esclarecer que são consideradas servidoras públicas trabalhadoras da administração direta, como merendeiras, pedagogas, enfermeiras, professoras, auxiliares e técnicas administrativas, assistentes sociais, jornalistas, agentes comunitárias de saúde, delegadas, policiais entre muitas outras profissões e funções. A grande maioria dessas atuam para prefeituras.

Em estudo de 2013, mais de 64% dos trabalhadores no serviço público estadual eram mulheres. Na Saúde essa proporção é ainda maior. Na imagem, Audiência Pública sobre a Situação da Greve dos Servidores da Saúde de Santa Catarina em 2012 – Foto: Miriam Zomer

Há servidoras do judiciário e do legislativo de copeiras e ascensoristas à técnicas judiciárias, analistas parlamentares e as próprias juízas e parlamentares. Também empregadas em empresas públicas como mergulhadoras na Petrobrás, margaridas da Empresa Pública de lixo, se ela ainda for pública, e escriturárias na Caixa Econômica Federal. Desde que não atuem em empresas contratadas por meio de contrato de concessão ou como empresa de terceirização de força de trabalho (atualmente a maioria das trabalhadoras junto à órgãos públicos de serviços como limpeza, manutenção e segurança são terceirizadas, tem péssimas condições de trabalho e não tem estabilidade. O mesmo acontece com trabalhadoras que atuam em serviços perigosos junto à empresas públicas como a Petrobrás e as do Sistema Eletrobrás, entre elas acontece o maior número de acidentes de trabalho e inclusive com vítimas fatais, porque prestam serviço que exige alta formação técnica, muitos riscos e caros custos de equipamentos de proteção. As empresas privadas que gerem essa força de trabalho não ligam para que elas morram em serviço, desde que mantenham altas taxas de lucro).

Você vai ao posto de saúde para seu filho fazer vacina ou anda de avião e ele pousa adequadamente por causa de competentes controladoras de voo? Você olharia pra essas pessoas e chamaria de marajás? E de parasitas?

Mas em 1989 Fernando Collor de Mello se elegeu presidente afirmando que acabaria com os marajás, porque já havia, mesmo com apenas um ano de promulgação da Constituição, uma campanha que associava serviço público com incompetência, ineficácia e corrupção. Verdade que até 1988 a grande maioria de servidores públicos era contratada por apadrinhamento político, já que era o dono do mandato ou alguém à sua indicação, o eleito naquele momento que escolhia a seu critério quem iria ser contratada, da merendeira à professora da Universidade, da auxiliar de serviços gerais à médica, da copeira à fiscal do IBAMA. Mesmo assim havia serviços públicos extremamente eficientes em muitas áreas, as universidades públicas já eram as maiores produtoras de pesquisa e as que ofereciam a melhor formação profissional e a Petrobrás já era uma das maiores petroleiras do mundo.

Mas para mudar a situação a CF estabeleceu que servidoras somente poderiam ser contratadas por concurso e deveriam ter estabilidade precisamente para acabar com o apadrinhamento. Essas medidas nem tinham começado a mostrar seus efeitos e o mito do privilégio, da corrupção e da incompetência em oposição à eficiência da iniciativa privada recebia muita propaganda. O senso comum reproduz essa crítica por ignorância, mas principalmente, porque a repetição desse discurso permanece até hoje.

Até o Banco Mundial e o FMI de vez em quando se dão ao trabalho de produzir documentos pra sustentar essa mentira. Isso é claro representa um interesse importante: a intenção dos muito ricos, como banqueiros e dos que mandam na FIESP, em se apropriar da riqueza nacional por um lado, como conseguiram ao ganhar a Vale do Rio Doce, a CSN e recentemente carteiras de investimento do Banco do Brasil por um décimo do que ela vale. Isso piorando as condições de trabalho, submetendo a lógica do serviço ao lucro – o que significa que ele custa mais caro aos cofres públicos e é de pior qualidade e reduzindo a atuação, porque eles empurram pra iniciativa privada somente atendendo a quem pode pagar o que deixou de ser prestado pelo público.

Mas isso não passa de mentira, boa parte dos grandes feitos internacionais pelos quais o Brasil é reconhecido mundialmente é desenvolvida pelo serviço público, com investimento e gestão Estatal. Exemplos: um dos mais eficientes programas de transplante do mundo é brasileiro e público, de prevenção e tratamento de HIV/AIDS idem, a técnica de prospecção de petróleo em águas profundas, a cobertura vacinal (só começando a falhar justamente pelo desmonte desde a Emenda Constitucional do Teto de Gastos – EC 95/2016 e pela campanha esdrúxula anticiência), a vigilância sanitária, a produção e energia hidrelétrica com menor impacto ambiental. Já serviços tradicionalmente prestados no Brasil por empresas privadas em regime de concessão como o caso do transporte público – um dos poucos no mundo em que a gestão e operação não é pública e estatal – é de baixa eficiência e restringe fortemente a mobilidade de brasileiros à casa – trabalho – casa.

Servidor público em protesto. Foto: Divulgação

Com a PEC 32/2020, conhecida como reforma administrativa, vamos retroceder de maneira muito piorada à situação de servidores pré constituição, esses vão trabalhar somente para interesses privados de chefes colocados por políticos de plantão. Concentra extremamente o poder de decisão sobre o que acontece com servidoras públicas, tanto nos contratos, restrição de direitos e de atuação; como na gestão dos órgãos onde atuam, nas funções que exercem, no que podem divulgar de seu trabalho. Em Florianópolis nessa semana diversos médicos começaram a denunciar que as UTIs estão lotadas, que a pandemia está descontrolada, que há muitos profissionais de saúde afastados por adoecimento diminuindo a capacidade em tratar. Uma médica de um hospital privado que atende pacientes do SUS por convênio foi ameaçada publicamente pelo provedor da Instituição por relatar o que está acontecendo de maneira pública. A gente quer isso no serviço público? Ricardo Galvão, ex diretor do Instituo de Pesquisas Espaciais foi exonerado do cargo por relatar o que acontece na Amazônia, mas como ainda temos o RJU os demais servidores do INPE mantém em funcionamento e públicos os dados coletados pelo sistema de satélites. Você queria que o Lula ou o Bolsonaro tivessem o poder de demitir a essas trabalhadoras por cumprirem seu dever? Ou mesmo fechar o INPE por este cumprir sua missão social?

Servidoras públicas não são marajás (quem tem aviões e torneiras de ouro são banqueiros e donos de multinacionais, né?), muito menos parasitas. Precisam ser respeitadas e ter condições de exercer suas funções independentes de quem ganhou as eleições.

Desde 1990, as mais de 100 emendas constitucionais, talvez com uma única exceção da emenda recém aprovada do FUNDEB, retiraram direitos das trabalhadoras que prestam os serviços públicos e das trabalhadoras que necessitam e utilizam deles.

A você que foi carregando um cartaz de “educação padrão FIFA” ou “Hospitais padrão FIFA” nas manifestações em 2013, tenho duas notícias: eles existiam e estão cada vez mais fragilizados e atuando menos por causa da EC 95 e outros ataques; são públicos e somente não são melhores porque a campanha de destruição continua e se você defende esses direitos pra todas as pessoas, então você defende a educação, a saúde, a assistência, a moradia, as políticas culturais, a segurança públicas e pra serem públicas elas precisam ser exercidas por servidoras públicas, com condições de trabalho e de vida dignas garantidas.

Parabéns a todas as servidoras públicas brasileiras!

Pela Revogação da Emenda Constitucional 95!

Não à PEC 32! Reforma Administrativa não!

Fora Guedes e Fora Bolsonaro!

 

Referências bibliográficas:

BAASCH, Davi; TREVISAN, Rafaela Luiza; CRUZ, Roberto Moraes: Perfil epidemiológico dos servidores públicos catarinenses afastados do trabalho por transtornos mentais de 2010 a 2013 –