5 de outubro: 30 anos da Constituinte

5 de outubro: 30 anos da Constituinte

Saída “lenta, gradual e segura” da ditadura militar foi parte de um contexto de tensões que envolveram a elaboração da Constituição para um Brasil democrático

Fonte: Brasil de Fato

Publicado em 04/10/18

No dia 5 de outubro, a Constituição Brasileira completa 30 anos. Fruto de amplo debate, a Carta Magna representou a refundação democrática no país após mais de 20 anos de ditadura civil-militar. A participação popular possibilitou conquistas importantes, especialmente ligadas aos direitos humanos e ao bem-estar social. Passados 30 anos, o texto constitucional já acumula mais de 100 alterações, o que impõe novos desafios à sociedade para resistir à perda de direitos.

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Assembleia Constituinte foi instalada por ministro do STF indicado por militares

Por Camila Maciel

“Instala-se, hoje, a Assembleia Nacional Constituinte”. A data é 1º de fevereiro de 1987 e essas foram as primeiras palavras do discurso do ministro José Carlos Moreira Alves, então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que presidiu a sessão. No plenário, a voz do deputado federal José Genoino (PT) se ergueu, aos berros e sem microfone, para questionar a legitimidade de um ministro indicado pelo general-presidente Ernesto Geisel (1974-1979) para conduzir o ato solene que daria início à refundação democrática do Brasil com a elaboração de um novo texto constitucional. A Constituição Brasileira – promulgada em 5 de outubro de 1988 – completa 30 anos.

“Quem devia estar ali eram os presidentes dos partidos, porque o poder emana do povo para instalar a Constituinte, e ele [o ministro Moreira Alves] vinha da ditadura militar”, questionou, à época, Genoíno. Em seguida, Ulysses Guimarães (MDB), que presidia a Assembleia Nacional Constituinte, fez chegar às mãos do colega um bilhete: “Manifestei-me ao ministro Moreira Alves favorável a sua manifestação”. Genoíno exibe com orgulho a moldura na qual está o papel amarelado, com o brasão da Câmara Federal, assinado por Guimarães. “Guardei até hoje”, disse, em entrevista ao Brasil de Fato.

“O Ulysses Guimarães já tensionava no sentido de, como um liberal autêntico, radicalizar a instalação da Constituinte. Nós fizemos esse protesto na solenidade de abertura, com embaixadores, ministros”, relatou o deputado. Ele reconhece o papel de liderança exercido pelo emedebista no sentido de aglutinar diferentes campos políticos da sociedade, o que contribuiu para dar contornos mais amplos à disputa eleitoral.

O episódio narrado por Genoíno revela algumas das tensões que fizeram parte do processo de instalação da Constituinte. A saída “lenta, gradual e segura” da ditadura militar, sem que houvesse ruptura, é uma delas. “A Constituinte se deu num contexto de agudização da crise que o país atravessava pós ditadura. A ditadura se enfraqueceu e foi derrotada pela via conservadora. A partir de 1983, foi uma transição pelo alto, como muitas vezes aconteceu no Brasil”, avaliou. Além das lembranças, Genoíno mantém grande acervo do período em uma biblioteca em casa.

Olívio Dutra, que também foi deputado pelo PT na época, lembra que a convocação da Assembleia Nacional Constituinte soberana e exclusiva era das demandas entre aqueles que lutavam contra a ditadura, além “da volta dos exilados, a libertação dos presos políticos e a anistia”, entre outras reivindicações. “Mas os generais foram fazendo as coisas ao seu modo com as forças que tinham ainda na sociedade e majoritariamente no Congresso. Por isso fizemos uma anistia que não é anistia e mais tarde reduziram a convocação de uma Constituinte para um Congresso Constituinte”.

Dutra refere-se à Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, que convocou os trabalhos, mas não garantiu que fossem eleitos representantes apenas para a elaboração do texto constitucional. Durante 20 meses, 559 parlamentares, sendo 72 senadores e 487 deputados federais participaram do processo, dividindo-se entre a elaboração da Constituição e os outros temas ordinários da Casa. Entre os senadores, 26 foram eleitos no pleito de 1982, quando não havia a proposição formal de uma Constituinte. Os demais senadores e deputados foram eleitos em 1986.

Além das contradições resultantes de um processo que tinha presença forte dos militares como foco de poder, o cenário político era formado ainda por um contexto de derrota na Campanha “Diretas Já”; pela morte de Tancredo Neves, que havia sido eleito indiretamente pelo Colégio Eleitoral como uma mediação diante da não realização de eleições diretas; e pela frustração com o Plano Cruzado do governo de José Sarney. “O Congresso Constituinte acabou se transformando numa espécie de caudal de saída política para o país sair da ditadura e ter nova Constituição”, apontou Genoíno.

O deputado avalia que, embora a conjuntura refletisse certo desgaste pelas derrotas recentes do campo popular democrático, a Constituinte aglutinou diferentes forças e, pelas ferramentas do próprio processo, se fez com participação da sociedade. “O Ulysses Guimarães tinha uma visão correta. Ele dizia o seguinte: ‘o Poder Executivo está em frangalhos, o Poder Judiciário legitimou a ditadura. Traz tudo aqui pra dentro’. O índio se pintava e ia falar no plenário. O banqueiro, a UDR [União Democrática Ruralista], a Fiesp [Federação das Indústrias de São Paulo], as mulheres, os torturados, os quilombolas, tudo, que eu acho que é um processo interessante”, apontou Genoíno.

Para a pesquisadora Caroline Bauer, professora do departamento de história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a vivência anterior com o autoritarismo é uma especificidade deste momento histórico da Constituinte. “Aquilo que estava latente aparece com força, que as pessoas tenham a sua voz, seus desejos ouvidos. Isso vinha desde as ‘Diretas Já’, ainda que a campanha tenha sido derrotada, não significou uma derrota no sentido da rearticulação da população, dos movimentos sociais e das demandas em relação ao Estado que vem ser corroborado em todo esse processo de participação na Constituinte e depois com as eleições diretas para presidente em 1989”, avaliou.

“Diretas Já”, eleição de Tancredo e posse de Sarney

Após 21 anos de ditadura, o Brasil tinha um presidente civil e de oposição. Tancredo Neves foi eleito indiretamente em 15 de janeiro de 1985, com 480 votos, derrotando Paulo Maluf (PDS), que contava com o apoio dos militares e recebeu 180 indicações. “A primeira tarefa do meu governo é promover a organização institucional do Estado. (…) Sem abandonar as obrigações e deveres de cada dia, temos que concentrar nossos esforços na busca de consenso básico à nova carta política. Convoco-vos ao grande debate constitucional”, disse Tancredo Neves, nesta data, em seu discurso.

Quatro meses depois, no entanto, um dia antes da posse que estava marcada para 15 de março, Tancredo foi submetido a uma cirurgia de emergência, e teve sua morte anunciada no dia 21 de abril de 1985. No dia seguinte, José Sarney, seu vice, era confirmado na Presidência. Sarney havia sido indicado pela Frente Liberal (futuro PFL, atual DEM), que era composta por dissidentes do PDS, o partido governista, na composição que levaria à vitória da oposição. Neves foi enterrado com uma grande comoção social e também várias teorias conspiratórias sobre a sua morte repentina.

Na herança de compromissos deixada por Tancredo para Sarney, estava a convocação da Constituinte. A eleição de 1986 conformou o quadro de deputados e senadores que atuariam no processo. O PMDB conquistou 303 vagas, o PFL ficou com 135, o PDS tinha 38 representantes, o PDT ficou com 26 deputados, o PTB com 18, o PT tinha 16 constituintes, o PCB e o PCdoB tinham três cada, o PSB conseguiu duas vagas e o PSC e o PMB, uma cada. O PMDB tinha mais do que a maioria absoluta da Assembleia Nacional Constituinte.

Os dados históricos são do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas (FGV), e do Senado Federal.

“Havia um campo democrático popular, onde se encontrava o PT, que somava em torno de 150 parlamentares, homens e mulheres de diferentes posições no campo da esquerda e de diferentes etnias o que era bom, bastante diversificado, mas não era um campo que tinha um alinhamento para fazer avançar todas as pautas que defendíamos”, apontou Olívio Dutra. Genoíno lembra que o PT estava em uma ala junto com partidos como o PCdoB e o PDT, que não pactuavam com a “transição pelo alto”. “O PT, por exemplo, não foi ao Colégio Eleitoral. Nós tínhamos nove deputados, três saíram do partido porque o PT puniu quem foi. Isso foi muito importante. O PT era uma espécie de ala esquerda da transição”, destacou.

O jurista Pedro Dallari, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), foi assessor parlamentar na época da Constituinte e aponta este processo como um “campo de embate de dois movimentos”: um da transição conservadora, representado por uma elite que buscava manter privilégios; e outro de um movimento progressista que a via a transição como uma possibilidade de mudanças mais efetivas, refletido pelo avanço da organização da sociedade civil, do novo sindicalismo e de movimentos populares. “A Constituição que dela resultou reflete o embate e as acomodações entre essas duas tendências”, apontou.

Entre os constituintes, deputados e senadores que ainda hoje figuram na política e que nos anos seguintes alcançaram a Presidência do país. Itamar Franco era senador pelo PL, tendo sido eleito em 1982. A legitimidade da participação daqueles parlamentares na constituinte foi questionada, inclusive por Tancredo Neves, porque quando foram eleitos o processo de reforma constitucional ainda não havia sido convocado. O mandato, portanto, não responderia a esse fim. Mais tarde, em 1992, Itamar viria a assumir a Presidência após o impeachment de Fernando Collor.

Já Fernando Henrique Cardoso, na época do PMDB, foi eleito em 1986 como senador. E Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi o deputado federal mais bem votado do país em 1986, com mais de 650 mil votos. Ulysses Guimarães foi o segundo mais bem votado, com mais de 590 mil votos. “Nós tivemos três presidentes da República que foram forjados naquele ambiente de negociação política e de revisão do Brasil. Por isso é que eu tenho uma visão positiva do processo”, apontou Dallari. Ele destaca que “nada que foi votado ali foi sem muita negociação, então houve muita discussão sobre o Brasil e muita mediação”.

A campanha “Diretas Já” reúne 1 milhão de pessoas nas ruas no Rio de Janeiro. Pesquisa do Ibope da época apontava que 85% eram favoráveis à redemocratização.

1945

Tancredo Neves, que havia sido eleito em janeiro, é internado no dia 14 de março, um dia antes de sua posse. No dia seguinte, seu vice, José Sarney, assume interinamente o cargo de presidente. Tancredo morre no dia 21 de abril; e no dia seguinye, Sarney se torna o presidente da república.

Março,
1985

É publicada a Emenda Constitucional 26, que concedeu poderes constituintes ao Congresso Nacional. Era derrotada, portanto, a ideia de uma assembleia exclusiva para a reforma da Constituição.

27 de novembro, 1986

Participaram da constituinte 559 parlamentares, sendo 487 deputados federais e 72 senadores, entre os quais 26 não haviam sido eleitos naquele ano e eram considerados “biônicos”. A primeira sessão ordinária da Constituinte colocou em voto se esses parlamentares poderiam ser constituintes ou não. Com o voto favorável de 394 congressistas, os senadores eleitos em 1982 foram aceitos.

15 de novembro, 1986

Solenidade de instalação da Assembleia Nacional Constituinte foi contestada pelos constituintes por ser conduzida pelo presidente do STF, ministro Moreira Alves, indicado por militares.

1º de fevereiro, 1987

24 de março de 1987 – Vai a debate o Projeto de Resolução nº 2, de autoria da presidência da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) e assinado pelas lideranças partidárias, que firmou o Regimento Interno da Constituinte. Foi uma das primeiras disputas políticas entre os constituintes e garantiu pontos importantes, como, por exemplo, a participação popular no processo e a organização dos trabalhos em 8 comissões temáticas, 24 subcomissões e uma comissão de sistematização. Também definiu que uma nova Constituição seria produzida do zero, ao invés de apenas reformas o texto então vigente.

24 de março, 1986

Início dos trabalhos das subcomissões, que prosseguiu até 25 de maio. Foram realizadas 182 audiências públicas, encaminhadas 11.989 propostas e apresentadas 6.417 emendas a anteprojetos.

7 de abril, 1987

Começou a ser veiculado o programa televisivo “Diário da Constituinte”, exibido diariamente na TV aberta com duração de 5 minutos. No primeiro programa, Ulysses Guimarães, que presidia a Assembleia Nacional Constituinte, convidou a população a participar do processo.

8 de abril, 1987

Início dos trabalhos das comissões temáticas, a partir dos anteprojetos produzidos pelos trabalhos das subcomissões.

26 de maio, 1987

Impressa a primeira edição
do Jornal da Constituinte.

1º de junho, 1987

O relator da Comissão de Sistematização apresentou o “Projeto Zero”, composto por 496 artigos, e marco inicial para a apresentação e discussão de novas propostas. A esse projeto, foram apresentadas 20.791 emendas, das quais 5.237 oriundas de etapas anteriores e 122 emendas populares. A Assembleia Constituinte enfrentava pressões para começar a votação.

14 de julho, 1987

Começou a votação do projeto da Comissão de Sistematização. Reforma agrária e sistema de governo estavam entre os principais temas debatidos.

24 de setembro, 1987

Mudanças profundas no regimento interno: a Resolução nº 3 permitiu a apresentação de emendas coletivas, desconsiderando as etapas anteriores.

5 de janeiro, 1988

Tem início o primeiro
turno de votações em plenário.

27 de janeiro, 1987

O segundo turno de votações
é concluído, após 38 sessões e 288 debates.

2 de setembro, 1988

5 de outubro de 1988 – Promulgação da Constituição Federal de 1988. O PT fez uma declaração de voto crítica, destacando divergências ao texto em temas como direito de propriedade, Forças Armadas, segurança pública, Poder Judiciário e a questão da tortura. As assinaturas dos membros do partido, contudo, constam nos arquivos da Constituinte

24 de setembro, 1987

“Abrem-se os caminhos”: uma Constituição feita do zero e com metodologia inovadora

Por Nina Fideles

“Num país de 30 milhões, 401 mil analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição como um vigia espera a aurora. A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”.

Foi com essas palavras que Ulysses Guimarães, no dia 5 de outubro de 1988, na função de presidente da Assembleia Nacional Constituinte, declarou promulgada a Constituição Federal brasileira. Em um discurso de pouco mais de meia hora, Ulysses retratou o cenário em que o país se encontrava, evocou por diversas vezes as mudanças que a Nação requeria, valorizou os esforços e participação por meio das 122 emendas populares com 12 milhões de assinaturas e criticou veemente os “traidores da pátria”: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”.

A Constituição de 1988 foi fruto de amplo debate, permeado por disputas metodológicas e ideológicas, que durou 18 meses. Teve início no dia 1 de janeiro de 1987, e teve a sua última sessão, com a votação em plenário do texto final, em 22 de setembro de 1988.

Segundo o deputado constituinte José Genoíno (PT), figura ativa durante todo o processo, “essa ordem constitucional foi produto de uma intensa disputa política. Ela não foi uma casa de sábios que tem a inteligência de dizer o que os humanos vão fazer. Isso é uma visão elitista, conservadora. Ela é fruto de paixões, confronto, de porrada”.

A política em disputa

A primeira grande disputa política deste longo processo foi a própria instalação da Constituinte. Com uma esquerda fortalecida, fruto da resistência e articulação contra a ditadura, a pressão por um processo democrático e popular para a construção da Carta Magna se intensificou. Ao mesmo tempo, do lado de lá, partidos órfãos da ditadura, que antes se configuravam como Arena, representavam os interesses da burguesia e buscavam que esse processo fosse o suficiente para a transição da ditadura para a democracia, mas sem que se alterassem as estruturas de poder.

Em 28 de junho de 1985, por meio da Emenda Constitucional nº 26, o então presidente da República José Sarney convocava um Congresso Constituinte para dezembro de 1986. Organizações como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o setor progressista da Igreja Católica organizado por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e partidos como o Partido dos Trabalhadores (PT), defendiam uma Constituinte exclusiva, com parlamentares eleitos por voto especificamente para a elaboração da Constituição. Os argumentos eram de que, eleitos exclusivamente com esta tarefa, teriam mais legitimidade e condições para realizá-la, sem se preocupassem com os seus mandatos. E assim, ampliariam a participação popular no processo.

A proposta de uma assembleia exclusiva foi derrotada. Os parlamentares eleitos, após concluídos os trabalhos, deveriam seguir com seus mandatos até 1990, quando seriam realizadas novas eleições.

“Toda disputa que se fazia era no sentido de radicalizar para haver uma ruptura da ordem constitucional. Não teve ruptura. Era uma transição pactuada, que se expressou na Constituinte. Era fazer uma transição pelo alto sem ruptura e nós defendíamos a ruptura. Por isso defendíamos as Diretas Já, uma Assembleia Nacional Constituinte, não um Congresso Constituinte”, afirma Genoíno.

Mas, segundo o ex-deputado, o processo foi vitorioso. “No Brasil nunca existiu um processo semelhante. Fora, você tem rupturas revolucionárias. Da ordem política, da ordem estatal e constrói uma nova Constituição. Nicarágua, Cuba, União Soviética. Do ponto de vista dessas Constituições, que vem através de reforma, eu acho que o processo que a gente viveu aqui foi um dos mais avançados. Apesar de a esquerda ser minoria na Constituinte, ela tinha um respaldo na sociedade muito grande. Foi a força da sociedade que nos respaldou para ganhar certas batalhas e incluir temas que nunca foram incluídos. Da mulher, meio ambiente, quilombolas, indígenas, coisas que nunca se colocou na Constituição”, ressalta.

Apesar do campo fértil para determinadas batalhas, o também deputado constituinte pelo PT, Olívio Dutra, acredita que as forças não foram suficientemente alinhadas e fortalecidas para romper com algumas estruturas.

“Havia o campo democrático popular, onde se encontrava o PT, e que tinha em torno de 150 parlamentares, homens e mulheres de diferentes posições no campo da esquerda e de diferentes etnias. O que era bom, bastante diversificado, mas não era um campo que tinha um alinhamento suficiente”, apontou.

O jurista Pedro Dallari, professor da Universidade São Paulo (USP), aponta que a Constituinte foi um campo de embates entre dois movimentos da sociedade brasileira: um tradicional, da transição conservadora; e outro progressista, que via na transição a possibilidade de mudanças mais efetivas. “A constituição que dela resultou reflete o embate e as acomodações entre essas duas tendências. Então nós vamos encontrar avanços importantes, mas, ao mesmo tempo, matérias que praticamente ficaram congeladas e não tiveram um avança mais significativo”, apontou.

Cabo de guerra

Nas eleições que definiram a composição de forças para a Constituinte, o PT elegeu 16 deputados, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como o mais votado, que se tornou líder da bancada. Mas a ampla maioria dos parlamentares estava associada aos partidos alinhados à direita, ou ao chamado Centrão. Ao todo, eram 487 deputados e 72 senadores que conduziriam os debates que culminaria na elaboração do texto final da Constituição.

Mesmo com os avanços relatados por Genoíno, o clima de conciliação entre os Poderes e a busca pela garantia das regalias a setores privilegiados da sociedade foi o tom predominante, garantido pelos esforços da ala mais conservadora da Constituinte, que era maioria e que contava com a figura do Sarney como o grande articulador desses interesses.

A segunda grande disputa pela radicalização no processo, desta vez vitoriosa, foi a elaboração do regimento interno. Sarney tentou emplacar a ideia de que o ponto de partida da construção do documento fosse a partir de uma Comissão de Notáveis, formada por 50 intelectuais, juristas, figuras expoentes da sociedade brasileira. Todos indicados pelo então presidente e presidida pelo jurista Afonso Arinos. Este grupo chegou a elaborar um anteprojeto, que nunca foi enviado ao Congresso.

Os deputados constituintes tinham o entendimento de que os trabalhos deveriam partir do zero. “Não se partia de um projeto feito fora das deliberações da soberania popular. Isso era uma questão central para nós. Não se parte de um projeto de Constituição, o regimento interno estabelece um ritual”, explica Genoíno.

O ritual a que se refere o ex-deputado é a Resolução nº 2, que instituía o Regimento Interno da Constituinte. Uma metodologia inovadora e aprovada após muitos conflitos e intensas negociações.

Foram formadas oito comissões, que seriam as responsáveis em elaborar o projeto da Constituição. Cada uma delas seria integrada por três subcomissões. Além destas, uma comissão de sistematização seria responsável pela consolidação dos debates e contribuições, que seriam levadas ao plenário.

A disputa pela consolidação de um regimento interno foi o primeiro passo. “A segunda questão era legitimar pelo regimento a participação popular”, segundo Genoíno. Com 30 mil assinaturas as entidades poderiam apresentar formalmente suas propostas na Assembleia Nacional Constituinte, tendo direito à palavra, inclusive no plenário.

Demandas sociais como a reforma agrária, a democratização da comunicação, algumas bandeiras relacionadas ao feminismo, questões indígenas, ambientais e dos quilombolas. E nesse mesmo tempo, pautas apresentadas por entidades como a União dos Ruralistas (UDR), Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Sociedade Rural Brasileira, entre outras.

“Eu acho que a Constituinte foi um grande momento de disputa de corações e mentes para uma nova ordem no Brasil e ficou ambígua, porque a esquerda ganhou algumas e a direita ganhou outras”, pontua.

Para o jurista Pedro Dallari, “foi um processo muito interessante, muito rico de debates, longo, e sem dúvida nenhuma, significou, para as possibilidades da época, de certa maneira, a realização de um pacto social que orientou a vida brasileira, eu diria, por um bom período, pelo menos, até recentemente, viabilizando um sistema de gestão da sociedade, do Estado, que agora dá sinais de esgotamento”, alerta.

Para muitos parlamentares constituintes entrevistados, senão todos, o processo da Constituinte foi riquíssimo, vivo, e representou a disputa e cenário de uma recém-formada democracia, com atores forjados a partir do embate travado em vinte anos de regime militar, sob um Estado de Exceção.

Sobreviventes e mantenedores da ordem disputaram na política, voto a voto, capítulo por capítulo, o texto final que nortearia os caminhos que se abririam desde então. Como afirmou Ulisses Guimarães em seu discurso improvisado na data de promulgação, “é caminhando que se abrem os caminhos. Ela (a Constituição) vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria. A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado”.

Trinta anos depois, o desafio para a sociedade está posto.

Constituinte recebeu mais de 73 mil cartas e 15 milhões de assinaturas em emendas populares

Por Camila Maciel

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a contar com a participação direta do povo. Por meio de cartas enviadas aos parlamentares, com assinaturas para proposição de um projeto ou diretamente no plenário, foram muitas as formas encontradas pela sociedade para fazer parte do processo que simbolizava a refundação democrática do país. Uma marca desta participação encontra-se no parágrafo único do Artigo 1º da Carta Magna: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.

Foi a primeira vez que tal redação passou a constar numa constituição brasileira. Exercer o poder diretamente era novidade não só no texto, mas também para os brasileiros e para os vários – e divergentes – interesses que se mostraram na Constituinte. “O Brasil se encontrou com o Brasil no Congresso Nacional”, descreveu a deputada constituinte Benedita da Silva (PT). A “Constituição Cidadã”, como foi batizada, traz essa marca na letra e no modo como foi feita. Plebiscito, referendo, consulta popular e iniciativa de lei foram dispositivos estabelecidos pela Carta de 1988.

Mulheres, quilombolas, indígenas, sanitaristas, sem-terra e sem-teto, entre outros, propuseram projetos e pressionaram deputados. “Se nós fizemos avançar algo, foi por conta dos movimentos populares, a pressão que existiu ali, porque as negociações por dentro eram todas para reduzir a força de projetos mais impactantes”, avaliou o deputado constituinte Olívio Dutra (PT). De outro lado, o poder econômico também se organizava. “Eu lembro, à noite, ali ao redor do Lago Paranoá [em Brasília], aquelas mansões iluminadas, tinham festas com os parlamentares que estavam lidando com os temas de interesse das elites brasileiras”, relatou Dutra.

Genoíno aponta que os mecanismos de participação garantidos no Regimento Interno foram transformando o processo e tornando-o verdadeiramente democrático. “O Congresso Nacional foi o grande caudal de manifestações que estavam contidas, que não se realizaram na campanha das Diretas Já, que estavam frustradas com o governo Sarney e que saia da ditadura com esse movimento de massas, as greves, as manifestações na periferia contra o custo de vida e as manifestações pela reforma agrária. Esse processo foi muito intenso”, avaliou.

Cartas aos constituintes

Em 1986, aos 32 anos, a enfermeira manauara Francisca Selene de Oliveira Claros atuava em um sistema de saúde público em que apenas os trabalhadores que pagavam a Previdência tinham direito ao serviço. “Quem não entrava, era indigente, praticamente”, relembrou em entrevista ao Brasil de Fato. Era assim que funcionava a Saúde antes da Constituição de 1988. “As pessoas que conseguiam consulta não tinham dinheiro pra comprar remédio, não adiantava nada. A gente via muito sofrimento do povo por falta de cuidado”, relatou.

Selene Claros, hoje com 74 anos, foi umas das mais de 73 mil pessoas que escreveram cartas aos constituintes para descrever o país com que sonhavam. “A saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado e a prestação da saúde deve-se dar através de um sistema unificado de saúde, que atenda a todos de maneira para garantir-lhes o atendimento em qualquer nível de complexidade que o caso requeira”, escreveu no formulário que encontrou em uma ida aos Correios naquela época. Mais de 2 milhões de cartas-resposta foram distribuídas pelo país.

“Infelizmente, esse banco de dados foi subutilizado não somente no momento da elaboração da Constituição, quanto posteriormente pelos próprios pesquisadores no sentido de que não existem trabalhos que tenham investido nesse fundo documental, pelo menos dentro da História”, apontou a pesquisadora Caroline Bauer, professora do departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que desenvolve trabalho com as cartas por meio do SAIC, o sistema do Senado Federal que guarda com todas as sugestões da população para a Constituinte de 1988.

De acordo com Bauer, não é possível mensurar quanto das sugestões foram incorporadas à Carta Magna. “Ainda que se saiba que diversos anseios da população tenham sido atendidos porque se tratavam de lobbys maiores ou de desejos maiores que estavam a fim com a postura de alguns constituintes, mas o banco de dados em si existe uma informação de que ele nunca tenha sido acessado pelos constituintes”, apontou. Não é possível dizer, por exemplo, que o Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado pela sugestão de Selene, mas a mensagem refletiu os anseios presentes naquele momento por uma reforma sanitária.

sua vida profissional, Selene, que hoje está aposentada, trabalhou como enfermeira na Estratégia Saúde da Família em Manaus. “Eu sonhava muito em trabalhar com comunidade. Tudo aquilo que eu desejei antes da Constituinte eu encontrei no Programa Saúde da Família. Eu trabalhei naquilo que eu queria e do jeito que eu tinha imaginado. Eu gostava de educar, antes de ser enfermeira, eu sempre fui educadora”, apontou. A Constituição de 1988 criou SUS, tendo como um dos princípios a universalidade, e garantido atendimento sob a lógica de promoção da saúde por meio da atenção básica.

A história dela e de outros que enviaram as cartas foi contada no documentário “Cartas ao País dos Sonhos”, da TV Senado, por ocasião dos 25 anos da Constituição de 1988.

Emendas populares

Do bairro operário de Salvador, Caminho de Areia, chegou a primeira emenda popular. A comunidade reuniu 30 mil assinaturas para encaminhar a proposta de criação de uma Delegacia de Defesa dos Direitos do Cidadão. O morador da casa número 2 na Rua Celeste, Antonio Filgueira, encabeçava a lista de assinaturas e, por isso, teria direito a 20 minutos para a explicar na tribuna a emendas constitucional aos parlamentares. A notícia da mobilização dos soteropolitanos foi parar na primeira edição do Jornal da Constituinte, impresso que teve 63 edições, para dar exemplo aos demais brasileiros que quisessem apresentar propostas.

“É gratificante constatar que o povo brasileiro correspondeu à nossa luta para que ele pudesse participar da elaboração da Carta constitucional. É também uma resposta aos constituintes elitistas e integrantes da classe dominante que se antepunham a esta pretensão legítima do povo”, disse à época o deputado José Maurício, do PDT do Rio de Janeiro. Foram 122 emendas populares, com mais de 15 milhões de assinaturas, das quais 83 cumpriram os requisitos do regimento. Entre as emendas aprovadas, está justamente a que garante os mecanismos de democracia direta.

Para serem consideradas, as emendas tinham que ter pelo menos 30 mil assinaturas em listas organizadas por no mínimo três entidades associativas, constituídas legalmente. Cada proposta deveria contemplar um único assunto e elas tinham o mesmo peso de uma sugestão encaminhada por parlamentares.

A emenda popular número 21, por exemplo, tratava sobre a iniciativa popular de lei e foi indicada com mais de 303 mil assinaturas. As entidades que propuseram a emenda foram a Comissão Brasileira Justiça e Paz e a Associação Brasileira de Imprensa, ambas do Rio de Janeiro, e a Associação Brasileira de Apoio à Participação Popular na Constituinte, de São Paulo. A criação do Fundo Nacional de Habitação Popular, aprovada em 2005, e a lei que estabelece a cassação de mandatos políticos por compra de voto, de 1999, foram resultado de proposições populares.

“Bancada do batom”

As mulheres também se mobilizaram na Constituinte por meio de emendas populares. Uma delas, a de número 20, recebeu mais de 42 mil assinaturas para pedir a igualdade de direitos e deveres entre cônjuges, no que diz respeito à sociedade conjugal. A proposta era organizada pelas entidades Rede Mulher, de São Paulo, Serviço de Informação da Mulher, de Mato Grosso do Sul, e pela entidade SOS Corpo, de Pernambuco. Ficou assim no parágrafo 5º do Artigo 226 da Constituição Federal: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.

Outro exemplo da pressão exercida pelo movimento feminista e de mulheres foi a incorporação pela primeira vez na República Brasileira do artigo que determina, no Artigo 5º, no inciso I: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Um marco da participação das mulheres foi a apresentação da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes (PDF), articulada pela chamada “bancada do batom”, como ficou conhecida na época a unidade das 26 deputadas federais. Não havia mulheres entre os 81 senadores.

“Nós éramos minoritárias naquele universo, mas nós tivemos muita cumplicidade entre nós, ajudadas pela organização das mulheres, ajudadas pelos partidos políticos. Em um primeiro momento, disseram: ‘elas não vão se entender’. Nós demos um show. Nós defendemos aquelas questões que nos unificavam, que não era só das mulheres, eram várias”, relembrou a deputada constituinte Benedita da Silva, a única negra. Ainda hoje a representação política de mulheres não reflete a sociedade brasileira, pois a atual legislatura (2015-2019) contém 54 deputadas, pouco mais de 10% do total de parlamentares.

Até a instalação da Constituinte, as mulheres só haviam tido participação na elaboração de uma Carta Magna em 1934, quando a deputada Carlota Pereira integrou a Assembleia Nacional Constituinte convocada após a revolução de Getúlio Vargas. De acordo com o Senado Federal, a novidade na década de 1980 representou um aumento da representação feminina no parlamento, saindo de 1,9% para 5,3% do total de representantes eleitos. A Consultoria Legislativa do Senado aponta que as deputadas constituintes apresentaram 3.321 emendas, 5% em relação ao total apresentado por todos os parlamentares (cerca de 62 mil).

A deputada Cristina Tavares (1934 – 1992) falou, à época, sobre as chacotas que as mulheres tiveram que enfrentar. “Nós fomos apresentadas na nossa chegada como coisas extravagantes, como ‘a musa da Constituinte’. De repente, as revistas vão abrir espaço para as mulheres, enquanto mulheres, mas também como a filha do presidente, a outra porque era preta, a outra porque era bonita, a outra porque era casal vinte, com toda essa falta de seriedade com que a imprensa encarou a chegada das mulheres à Constituinte e, hoje, estão sendo tratadas como políticas que têm posições e que têm intervenções na Constituinte, semelhante às dos homens”, escreveu em artigo na edição especial do Dia da Mulher no Jornal da Constituinte, em março de 1988.

Benedita da Silva enfrentou o preconceito dos que não acreditavam que ela seria capaz de assumir um mandato como deputada, não apenas por seu gênero, mas por conta da cor de sua pele. “‘Será que ela fala direito?’, ‘será que ela vai dar conta?’. Até mesmo quando eu estava candidata a deputada federal constituinte, diziam para mim: ‘olha, mas não é a Câmara de Vereadores, lá a coisa é muito diferente’. Quase que dizendo: ‘talvez não dê para você’. Aí eu dizia: ‘talvez não dê para eu ser eleita, agora para estar deputada eu vou dar conta’. E foi o que aconteceu”, relembra.

Na avaliação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), criado em 1985, a mobilização refletiu o movimento de mulheres que havia ampliado seu protagonismo no final dos anos 1970, na luta contra a carestia, e a própria criação do conselho e do processo de participação amplo na Constituinte. Na pauta das mulheres, questões como “salário igual para trabalho igual”, extensão dos direitos trabalhistas e previdenciários às empregadas domésticas e estabilidade para a mulher gestante. Apesar de conquistas, tais temas que ainda hoje são desafios.

“As trabalhadoras domésticas dormiram dentro do plenário, dormiram lá, porque não tinham nem para onde ir. E diziam para elas: ‘vocês não vão conseguir, [o que vocês querem] não tem nada a ver com a Constituição’. E era o reconhecimento de uma categoria centenária”, relembrou Benedita. A regulamentação deste tema, no entanto, só veio em 2013, no segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff (PT), com a Emenda Constitucional nº 72. Foram mais 25 anos sem que essas trabalhadoras tivessem seus direitos plenamente reconhecidos.

Levantamento do CNDM aponta que cerca de 80% das reivindicações feitas pelas mulheres foram aprovadas. Entre elas, a igualdade jurídica entre homens e mulheres, a ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos das mulheres, a igualdade de direitos e responsabilidades na família, a definição do princípio da não discriminação por sexo e raça/etnia, a proibição da discriminação da mulher no mercado de trabalho e o estabelecimento de direitos no campo da reprodução. Questões como o aborto, no entanto, que já aparecia no debate constitucional e ainda hoje é pauta das mulheres, encontrou muita resistência.

Povos ancestrais

Foi apenas na Constituição de 1988 que o reconhecimento de comunidades quilombolas se fez presente no ordenamento jurídico do país. Os constituintes, contudo, não dedicaram muitas linhas ao tema. No Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, está escrito: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Embora curta, a frase simboliza uma conquista que ainda hoje enfrenta resistências.

“Praticamente as pessoas desconheciam que existem no Brasil quilombolas que ainda falam aquela língua lá de quando chegaram da África. Claro que agora são bisnetos, netos, daqueles que aqui estiveram, mas era muito difícil naquele momento você tratar dos quilombolas. E nós enfrentamos a UDR [União Democrática Ruralista] duramente, perdemos a reforma agrária como um todo, mas a do negro, pelo menos na Constituição, a reforma dos quilombolas estavam ali colocados”, relembrou a deputada Benedita da Silva.

O mais recente enfrentamento para ver valer essa conquista foi o questionamento do Partido Democratas (DEM) sobre a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003, primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que regulamentou o Artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição. O decreto estabelece, por exemplo, regras de autodeterminação, pelo qual a própria comunidade define quem são e onde estão os quilombolas. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em fevereiro deste ano pela constitucionalidade do decreto. Ação, protocolada em 2004 pelo DEM, teve 14 anos de tramitação.

Um dos receios de entidades que acompanharam a votação no STF era que fosse definido um marco temporal, ou seja, uma data para a comprovação da efetiva ocupação das terras. Neste caso, só poderiam ser tituladas áreas que estivessem sob posse quilombola em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. De acordo com o Conselho Missionário Indígena (Cimi), a vitória no STF representou também uma conquista aos povos indígenas que enfrentam a ameaça do marco temporal.

No caso dos indígenas, a ameaça continua a tramitar no Congresso Nacional. Trata-se do Projeto de Lei (PL) 490 de 2007, que defende a inclusão da tese do marco temporal no Estatuto do Índio. Outra possibilidade de retrocesso seria a aprovação da PEC 215 de 2000, a qual transfere a competência da União na demarcação das terras indígenas para o Congresso. A proposta também possibilita a revisão das terras já demarcadas. A mobilização de indígenas impediu, por enquanto, a aprovação da medida.

Reforma Agrária, Judiciário e Comunicação estão entre as áreas mais disputadas na Constituinte

Por Camila Maciel

Foram muitas as disputas e tensões no processo da Constituinte de 1988. Algumas delas, em especial, ajudam a entender o Brasil ainda hoje. Comunicação, Judiciário, seguridade social e ordem econômica são exemplos de como certos avanços foram possíveis até o limite da correlação de forças do período. “Era o ‘deixa pra depois’”, relembra a deputada constituinte Benedita da Silva sobre os temas em que não havia mais consenso para ir além e eram aprovados para regulamentação posterior. Hoje, 119 dispositivos da Carta Magna, que completa 30 anos, ainda aguardam lei espe} Coordenação de Jornalismo: Nina Fideles | Coordenação de Multimídia: José Bruno Lima | Texto: Júlia Rohden e Matheus Lobo | Artes: Gabriela Lucena | Fotos: Matheus Lobo

Um dos exemplos vem do capítulo sobre comunicação social. O deputado constituinte Carlos Alberto Oliveira Dos Santos, o Caó, do PDT, propôs a emenda que viria a ser o parágrafo 5º do Artigo 220: “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. O que se observa hoje, no entanto, é exatamente o oposto. Pesquisa das organizações Intervozes e da Repórteres sem Fronteiras (RSF), divulgada em 2017, mostra que cinco famílias controlam metade dos 50 veículos de comunicação com maior audiência no Brasil.

O tema da reforma agrária, por sua vez, é retratado pelos constituintes e meios de comunicação na época como o mais polêmico. Na avaliação do engenheiro agrônomo Gerson Teixeira, que presidiu a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), as propostas da União Democrática Ruralista (UDR) venceram, a despeito da mobilização de entidades do campo que entregaram emenda com mais de 1,5 milhão de assinaturas. “Eu não acho que a Constituição de 88, que é chamada de Cidadã, possa ter esse carimbo quando se trata da questão agrária”, apontou.

No capítulo da Ordem Econômica e Financeira, um dos principais debates foi sobre o direito de exploração dos recursos minerais. “O subsolo é nosso” era o mote da campanha entre os que defendiam que a concessão fosse garantida apenas a empresas brasileiras. A votação que garantiu apenas aos brasileiros as reservas foi encerrada com solo do hino nacional e com gritos de “Brasil, Brasil”, conforme relatos na edição do Jornal da Constituinte, impresso na época.

Sete anos depois, no entanto, a conquista “do subsolo verde e amarelo” foi relativizada ao permitir que empresas, mesmo que estrangeiras, mas constituídas no Brasil, pudessem explorar as reservas. Uma nova redação ao parágrafo primeiro do Artigo 176 foi dada pela Emenda Constitucional nº 6 de 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Aliás, foi nas duas gestões do tucano que este capítulo recebeu cinco das sete emendas que possui.

Entre avanços e recuos, o saldo final da Constituinte é tido, por políticos e especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, como positivo para a garantia de direitos sociais. “Ainda que algumas questões não entraram, nós sabemos que temos uma Constituição das mais avançadas, que, se cumprida, resolve pelo menos 50% das injustiças e da questão dos direitos que as pessoas têm de uma vida digna”, apontou Benedita.

Comissão que discutiu comunicação não
teve relatório por causa de divergências

A Comissão da Família, da Educação, da Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, que acolheu as discussões desses temas em subcomissões na Constituinte, foi a única a não apresentar relatório final à Comissão de Sistematização. O fato ocorreu justamente pelas divergências na área da comunicação.

“O conflito girava em torno de alguns temas centrais, mas o que provocou uma fissão total desde o princípio, que aliás era fruto de uma emenda popular, foi a criação de um conselho, [o Conselho Nacional de Comunicação]”, explica o professor emérito da Universidade de Brasília Venício Lima, que na época atuava como assessor parlamentar da deputada Cristina Tavares (PMDB), relatora da subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Para ela, órgão seria um “instrumento de ação social sobre os meios de comunicação”.

Segundo Lima, o conselho tinha como referência o modelo da FCC americana (Federal Communication Commission, pela sigla em inglês). “É onde são decididas as grandes questões da comunicação. Claro que o Congresso, inclusive nos Estados Unidos, é uma instância superior, mas essa agência, que é um órgão regulador, foi desde o princípio um ponto de total discórdia. E no texto final acabou passando um texto proposto já para o plenário da Constituinte, vindo da Comissão de Sistematização, e não da comissão que tratou desse assunto, como em todas as outras áreas. Foi um conselho esvaziado de poder deliberativo, que é esse conselho que funciona até hoje”.

A subcomissão que discutia Comunicação tinha, inclusive, uma bancada própria de constituintes que representava os interesses dos meios de comunicação. Na época, Antônio Carlos Magalhães (PFL) era ministro das Comunicações e tinha, entre os integrantes da comissão, o seu irmão, o deputado ngelo Magalhães. “O Antônio Carlos Magalhães mesmo, direta ou indiretamente através de familiares e sócios, era concessionário”, apontou Lima. O professor cita ainda a participação do constituinte Antônio Britto que tinha sido âncora da TV Globo, porta-voz de Tancredo Neves. “Era um dos coordenadores dessa bancada”, relembrou.

A organização Intervozes cita o estudo do cientista político Paulino Motter, intitulado ” A Batalha Invisível da Constituinte”, para mostrar que em três anos e meio do governo José Sarney (1985-1990) distribuiu 1.028 outorgas, cerca de 25% delas no mês de setembro de 1988. Segundo a pesquisa, quase todos os beneficiados foram parlamentares que, direta ou indiretamente, receberam as outorgas em troca de apoio político aos cinco anos de mandato e ao regime presidencialista. Motter identificou que, dos 91 constituintes que receberam ao menos uma concessão de rádio ou de televisão, 82 votaram a favor do mandato de cinco anos.

“A coisa ficou polarizada entre essa bancada da comunicação e um grupo minoritário de parlamentares que defendiam as bandeiras que já naquela época eram bandeiras históricas de democratização da área”, apontou Venício Lima. Mesmo assim, ele avalia que foi possível incluir propostas mais polêmica tanto para um lado, como para o outro. Uma delas é a que proibiu o oligopólio dos meios de comunicação. Ele critica, no entanto, o fato de que algumas delas nunca não foram regulamentadas. “Viraram letra morta”, apontou.

Lima também avalia como avanço a própria definição de um capítulo para tratar de Comunicação. Além disso, destacou conquistas com o fim da censura e a liberdade de imprensa, que foram postas já no Artigo 220, que abre o capítulo. Também é destaque o Artigo 223 que trata da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal. “Ele positiva o sistema público, cuja primeira tentativa concreta foi a criação da EBC [Empresa Brasil de Comunicação], em 2007, e que hoje foi transformada em uma empresa estatal, e não pública como se tentava construir, mas isso também acho uma vitória importante porque está lá na Constituição”.

Entre as conquistas dos representantes dos grandes meios de comunicação, estão as condições para não renovação de concessões. Os requisitos envolvem a aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal. A cassação da concessão, por sua vez, depende de decisão judicial. E o prazo para concessão ou permissão é de dez anos para emissoras de rádio e de 15 anos para as de televisão. “Tornaram a área de radiodifusão completamente assimétrica em relação a qualquer outra concessionária de serviço público”, avaliou o professor.

O modelo definido constitucionalmente e a falta de regulamentação do setor garantiram que os interesses do poder midiático se mantivessem e se aprofundassem ao longo de 30 anos. “São regras e normas que sempre favorecem os empresários da área sem qualquer preocupação com a inclusão de vozes no debate público, que seria o grande papel, no meu ponto de vista, do serviço público, do sistema de comunicação em um país democrático”, apontou.

Na avaliação de Venício Lima, o impacto deste modelo oligopolizado da mídia reverbera no viés econômico e também político. Ele cita como exemplo a Operação Lava Jato em que os próprios magistrados deixam claro o uso da mídia para construção de uma opinião pública favorável. “O comprometimento dos meios de comunicação é fundamental, é crucial, é decisivo”, apontou.

O golpe de 2016 que retirou a presidenta Dilma Rousseff do poder é outro exemplo, na avaliação do professor, da partidarização da mídia. “Isso não é um fenômeno só brasileiro, mas no nosso caso há já estudos fartos sobre isso, sobre momentos decisivos da história política brasileira, desde a década de 50 do século passado, quando há uma radiodifusão dominante nacional de rádio e TV, que a ação política da mídia tem sido decisiva, desde Getúlio até hoje, passando pelo golpe de 64”, disse ao Brasil de Fato.

Com mobilização pela reforma sanitária,
Constituição criou o SUS

Um sistema público de saúde que atendia apenas trabalhadores que tivessem carteira assinada. Era assim antes da Constituição de 1988. O Sistema Único de Saúde (SUS) não existia. O atendimento se dava por meio do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), hoje extinto, e se baseavam em medidas curativas. Quem não contribuía com a Previdência Social, dependia das redes municipais e estaduais, que tinham menos recursos. Outra opção era a rede de filantropia, que atendia principalmente pessoas necessitadas.

“O primeiro problema é que ele é um sistema de exclusão. Toda a população rural ficava fora, toda população do mercado informal, que sempre foi muito mais do que o mercado formal, ficava fora. Era um sistema que mais excluía do que incluía”, apontou Sônia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Ela foi uma das idealizadoras do SUS e atuou como assessora parlamentar no processo da Assembleia Nacional Constituinte.

Além da exclusão, ela classifica esse modelo anterior ao SUS como hierarquizador, pois o atendimento também não se dava de forma igualitária para os que estavam incluídos. “Não havia conceito de igualdade, ou seja, existiam os institutos de aposentadoria e pensão em que cada um tinha sua regra própria de acordo com a capacidade de negociação política. Qual é a contribuição para Previdência Social? Cada categoria tinha uma contribuição diferente. Quais são os benefícios? Cada categoria tinha uma pauta de benefício diferente, de acordo com sua força”, relembrou.

Com isso, o sistema público atendia cerca de 30 milhões de pessoas por meio dos serviços hospitalares, segundo dados do Ministério da Saúde. Já em 2015, de acordo com pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 71,1% dos brasileiros foram a estabelecimentos públicos de saúde quando tiveram algum problema de saúde. O percentual representa mais de 146 milhões de pessoas. Além disso, o levantamento indica que 47,9% apontaram as Unidades Básicas de Saúde como sua principal porta de entrada aos serviços do SUS.

Este era parte do cenário da saúde pública no Brasil antes da Constituinte de 1988. Outro fator que fazia parte do contexto era a mobilização, especialmente de profissionais de saúde, pela chamada reforma sanitarista e que exigia mudanças no sistema. “Contra essa ideia de que a política social do Estado deve ser apenas para uns e os tratar diferentemente que a democracia se impõe como ideia igualitária, que ela seja universal e que seja igualitária. Essa é uma discussão democrática, era isso que a gente estava propondo. Nós teríamos que ser universal e igualitária”, explicou Fleury.

A saúde foi muito debatida nos anos que antecederam o processo da Constituinte e os acúmulos serviram para subsidiar os parlamentares na elaboração da nova Carta Magna. Um marco foi a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, em Brasília. O médico sanitarista Sérgio Arouca, que abriu os trabalhos da conferência, falou sobre a necessidade um Estado de bem-estar social como meio de se alcançar a saúde da população.

“Bem-estar social significa mais do que não estar doente. Bem-estar significa que [as pessoas] tenham direito a casa, ao trabalho, a um salário condigno, direito a água, vestimenta, educação, a ter informações sobre como se pode dominar esse mundo e transformá-lo”, disse Arouca em um trecho da palestra. Os debates da conferência impulsionaram o modelo a ser definido posteriormente na Constituição. Equidade, universalidade e integralidade são até hoje os princípios do Sistema Único de Saúde.

Fleury destaca a crise da Previdência Social na década de 1980, como um dos elementos que possibilitou o avanço do modelo do SUS na Constituinte, pois era o sistema de seguridade social que financiava o serviço público por meio do serviço privado. “Primeiro o setor privado fazia a ação médica, depois mandava a conta para o Inamps e não havia o menor controle. A inviabilidade deste modelo levou à crise da Previdência e às iniciativas para que se buscasse reduzir os custos da saúde dentro da Previdência Social”, apontou.

Outro contexto que permitiu o avanço da proposta, na avaliação dela, é que o setor privado não tinha uma proposta clara, “a não ser manter a situação deles, que era de ter um mercado cativo que era o mercado do público”. Segundo Fleury, o mercado era bastante dependente do Estado e queria manter esses privilégios. Atualmente isso dá por outros meios, como por exemplo, a restituição integral do imposto de renda com os gastos particulares em saúde.

Apesar de os caminhos estarem abertos para que o SUS fosse previsto constitucionalmente, Fleury lembra que havia resistência, a qual era representada pelos parlamentares do chamado Centrão, que reunia constituintes de centro-direita. “Eles queriam um sistema nacional de saúde, não um sistema público de saúde”, destacou. A pesquisadora destaca que essa seria uma forma de, além de garantir recursos, garantir poder. “Querem que as decisões políticas não sejam só do setor público, que elas sejam partilhadas com o setor privado, já que esse seria um componente essencial do sistema nacional de saúde”, apontou.

Um dos temas polêmicos que entrou na Constituinte, por exemplo, foi a ideia de que os medicamentos não pudessem ser vendidos com nomes fantasia. Atuaram neste caso as entidades representantes da indústria farmacêutica. Outro ponto derrotado pela força do empresariado foi o que trazia para o SUS as responsabilidades com a saúde do trabalhador. Grupos corporativistas defenderam que o controle ficasse com o Ministério do Trabalho. “Nós perdemos as duas”, relembrou a Fleury.

Entre os desafios atuais do SUS, a pesquisadora aponta a regulação do setor privado e o subfinanciamento do sistema público. Ela aponta que a correlação de forças da Constituinte fez com que fosse mantida a ideia de complementaridade com a existência do mercado privado de saúde, mas que não foram definidos meios de regulação naquele momento. “Essa realidade nos impunha que deveria ter algum tipo de regulação, e nós nunca tratamos disso. Foram os próprios liberais que foram trazer essa matriz de regulação [década de 1990]. Esse setor se desenvolve sem regulação de proteção à saúde da população ou de proteção à própria saúde”, avaliou.

Função social da propriedade é relativizada
no capítulo da reforma agrária

Na Constituição de 1988, o direito de propriedade é cláusula pétrea. De acordo com o deputado constituinte José Genoíno, a situação é incomum em textos constitucionais no mundo. No caso do Brasil, as disputas na Constituinte permitiram que esse direito ficasse subordinado à função social da propriedade. Na avaliação de Gerson Teixeira, ex-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), no capítulo da reforma agrária, no entanto, essa condicionante foi relativizada.

“Isso foi uma das grandes vitórias da UDR [União Democrática Ruralista], quando eles colocaram, no artigo 185, que são insuscetíveis de desapropriação a pequena e a média propriedade e a propriedade produtiva, aí mataram a Constituição. Porque aí basta a propriedade ser produtiva e aferida com base em critérios técnicos de 1975 até hoje e você não desapropria nada”, explicou.

O índice de produtividade utilizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não é atualizado há 40 anos. Relatório da Organização das Nações Unidas em 2009 já apontava que este era um dos grandes obstáculos à reforma agrária no país, tendo em vista, por exemplo, que o rendimento média da cana-de-açúcar aumentou 65% desde 1975 e o rendimento da soja, 53%.

Teixeira destaca ainda que a Constituição indica, no parágrafo único do artigo 185, a criação de uma lei para estabelecer as normas para a função social da propriedade produtiva. “Até hoje essa lei não saiu, então por isso que quando é em benefício dos pobres ou ignoram ou interpretam na literalidade”, criticou. A reforma agrária foi um dos temas mais polêmicos na Constituinte e, para o ex-presidente da Abra, isso refletia também o ascenso dos movimentos campesinos na época. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por exemplo, havia sido fundado em 1984.

Os entraves à reforma agrária na Constituição de 1988 podem ser sentidos na prática atualmente. “Diante de todas as dificuldades colocadas nas normas, você praticamente obtém terra para reforma agrária do setor público, terras públicas”, apontou. Dados do Censo Agropecuário do IBGE, divulgados em julho deste ano, mostram que a estrutura agrária no Brasil se concentrou ainda mais nos últimos 11 anos, na comparação com 2006, quando foi feita a última pesquisa.

As propriedades rurais com até 50 hectares (equivalentes a 70 campos de futebol) representam 81,3% do total de estabelecimentos agropecuários, ou seja, mais de 4,1 milhões de propriedades rurais. Se considerada a parcela de terra ocupada por elas, equivale a 12,8% do total da área rural produtiva do país. Na pesquisa anterior, a área ocupada por essas propriedades correspondia a 13,3%. Por outro lado, 2,4 mil fazendas com mais de 10 mil hectares (14 mil campos de futebol) correspondem a 0,04% das propriedades rurais do país, mas ocupam 51,8 milhões de hectares, ou 14,8% da área produtiva do campo brasileiro.

Genoíno lembra que, durante a Constituinte, foram feitas tentativas de que o texto da Carta Magna incorporasse o Estatuto da Terra, de 1964. “A gente queria legalizar o Estatuto da Terra, que veio da ditadura militar, e não conseguimos”, apontou. Teixeira avalia que do ponto de vista formal, o estatuto é uma lei com conceitos mais modernos e civilizatórios, mas que não seria suficiente, pois “a operação política que é o problema”.

“Enquanto a gente tiver uma correlação de forças do Judiciário e no Congresso Nacional desfavorável ao povo de um modo geral e, em particular, aos trabalhadores e a população rural, eu não vejo que uma lei seja definidora de que aquilo ali vai pra frente ou não. A questão é estritamente política, de correlação de forças. A questão só não é mais grave porque nós temos um movimento organizado forte no campo, que é o MST, e setores do movimento sindical”, avaliou.

E os retrocessos nas políticas para o campo avançaram após o golpe de 2016. A Medida Provisória (MP) nº 759, de dezembro de 2016, deu início às mudanças pretendidas pelo agronegócio ao mudar a lei agrária e acelerar a emancipação dos assentados. A MP foi convertida na lei nº 13.465/2017. O discurso do Palácio do Planalto era de que as mudanças dariam aos assentados os títulos definitivos das terras onde vivem. Mas na prática, isso aumenta o assédio de grandes proprietários de terra sobre os pequenos agricultores familiares. Além disso, desobriga o Estado com políticas de assistência técnica e permanência no campo.

“O agronegócio está ávido por essa terra, eles querem desconstituir reserva legal, querem se apropriar de terra indígena e querem se apropriar também das terras dos camponeses da reforma agrária”, apontou Teixeira. Para ele, isso significa a “decretação do fim da reforma agrária”, mesmo com o direito previsto constitucionalmente. “Hoje é um programa feito em terras públicas e, se você não mexe no regime de propriedade privada da terra, você não diminui o grau de concentração. Só diminui a concentração quando mexe na terra privada”, apontou.

Única subcomissão relatada pelo PT na Constituinte
foi a que definiu o papel do Judiciário

“É até uma ironia”. É assim que o jurista Pedro Dallari, professor de Direito Internacional da Universidade de São Paulo (USP), se refere ao fato de que a única subcomissão relatada pelo PT na Constituinte tenha sido a que definiu o papel do Poder Judiciário e do Ministério Público. Ao deputado Plínio de Arruda Sampaio (1930-2014) coube esta tarefa. “A Assembleia Nacional Constituinte deu mais poderes ao Judiciário e ele não se democratizou, por isso que ele se transformou nesse superpoder que é hoje. Nós perdemos”, avaliou o deputado constituinte José Genoíno.

Dallari lembra que o papel reservado ao Ministério Público (MP) e ao Poder Judiciário na época refletia as “diretrizes progressistas que propiciaram o empoderamento desses entes na vida brasileira”. A despeito do que se conhece hoje como “ativismo judicial”, com interferências políticas do Judiciário nos demais Poderes, Dallari considera positivo os contornos de independência conferidos ao MP e à Justiça.

“Se é verdade que esses entes têm assumido um papel mais relevante na sociedade, principalmente no que diz respeito ao campo normativo, muito das regras de direito da vida social hoje vem do Judiciário, e não do legislativo, isso se deve em grande parte à omissão do legislativo. O grande problema hoje na sociedade brasileira e no Estado, na organização do Estado, é o legislativo”, avaliou.

Ele cita como exemplo a discussão sobre o aborto na sociedade brasileira. “Na Argentina, houve a discussão e a votação na Câmara dos Deputados e no Senado da legislação sobre o aborto, que é o local obviamente para se discutir isso. No Brasil, onde ela está sendo conduzida? No Supremo Tribunal Federal”, criticou.

Sobre a necessidade de uma reforma do Sistema Judiciário, Dallari avalia que ela deve ser feita “com cuidado” de modo que não seja pautada pelas conveniências políticas de qualquer grupo, devendo, portanto, envolver toda a sociedade. Entre as mudanças necessárias, ele cita as atribuições dos tribunais superiores. “Em nenhum lugar do mundo, o Supremo Tribunal Federal, ou mesmo um tribunal como o Superior Tribunal de Justiça, julga questões penais ou de habeas corpus, isso não existe”, comparou.

Genoíno, por sua vez, critica o corporativismo civil dentro do Estado. “Nós [em referência aos governos do PT] mudamos um pouco, fizemos a reforma do Judiciário que criou o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público, mas predominou nessa Emenda 45 uma visão corporativa das instituições”, apontou. Para ele, uma das limitações do partido ao chegar ao poder foi não enfrentar as bases conservadoras e autoritárias do Estado. “Isso não foi rompido pela Constituinte e algumas leis fortaleceram esse conservadorismo e esse autoritarismo, lamentavelmente”, disse ao Brasil de Fato.

Questionado sobre as condições políticas para esse enfrentamento, o ex-deputado aponta que, “mesmo perdendo”, deveria ter sido feito. “Quando você disputa a narrativa você perde, mas tem a narrativa. Por exemplo, a reforma política, a questão da comunicação, a questão da tributação das grandes rendas, a questão do sistema de controle de freios e contra freios nos Poderes. Você podia perder, mesmo sendo governo, você faz a disputa e ganha a narrativa. Você ou ganha na narrativa ou ganha no mérito”, avaliou.

O deputado constituinte cita como exemplo a Comissão Nacional da Verdade. “O nosso grande problema foi não ter feito uma disputa política de democratização das instituições do Estado. A própria comissão poderia ter produzido uma situação política em que as Forças Armadas pedisse desculpas pelo fato de ter tido terrorismo de Estado”, apontou.

Alterações e retrocessos após o golpe de 2016 revivem debate sobre nova Constituinte

Por Camila Maciel

Ao longo de 30 anos, a Constituição Brasileira foi alterada 105 vezes. Uma média de quatro mudanças por ano desde 1992, sendo que seis emendas foram resultado da revisão constitucional de 1993 e seguiram rito próprio. De acordo com a Consultoria Legislativa do Senado Federal, não há Constituição democrática no mundo com tantas mudanças — ainda assim, o debate sobre a necessidade de uma nova Constituinte divide opiniões.

Especialistas e políticos ouvidos pelo Brasil de Fato divergem sobre a necessidade, especialmente após o golpe de 2016, de ser reviver o ambiente de refundação democrática criado pela Assembleia Nacional de 1988. De um lado, há o temor de que a correlação de forças implique em retrocessos; de outro, a avaliação de que a Constituição Federal foi desfigurada.

“Nós temos que refundar o Estado democrático no Brasil. Isso pressupõe um processo Constituinte que produza uma nova ordem constitucional. Essa Constituição que está aí foi profundamente desfigurada do ponto de vista das suas essências. Um país precisa ter uma referência e essa Constituição foi tão violentada que perdeu isso”, avalia o deputado constituinte José Genoíno (PT). Ele aposta na construção de um processo social que leve a este novo marco. “Você só tem uma Constituição em uma situação quente. Você tem que ter um ambiente de disputa política para produzir um novo pacto constitucional”, apontou.

O constituinte avalia que o golpe de 2016, que retirou a presidenta Dilma Rousseff (PT) da Presidência da República, derrotou, “numa lapada só”, “o pacto político de 1988, a inclusão social do governo Lula e os avanços da Era Vargas”. Para Genoíno, a Constituição atualmente não tem legitimidade política. “Em vez dele [pacto de 1988] se consolidar, a direita que ganhou eleições sempre apresentou emendas constitucionais, principalmente na ordem econômica. Segundo, a quantidade de emendas aprovadas desfigurou a Constituição. Terceiro, a ruptura da ordem constitucional. Estamos num processo de ruptura, a Constituição está sem legitimidade”.

Essa opinião é compartilhada pela constituinte Benedita da Silva. Para ela, que exerce hoje mandato como deputada federal, a quebra democrática com o golpe de 2016 levou à retirada de direitos e é preciso um novo pacto para recuperar a legitimidade constitucional. “O que mexeram na Constituição no que diz respeito aos direitos foi muito, e aqueles que eles não puderam mexer eles criaram uma interpretação que interessava dependendo das circunstâncias”, disse, referindo-se ao papel do Judiciário.

O ministro do Superior Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, por sua vez, disse, ao participar de palestra sobre os 30 anos da Constituinte, em 13 de agosto deste ano, organizado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), ser contrário à convocação de uma nova assembleia nas atuais circunstâncias brasileiras, marcada por uma “polarização e dificuldade de construir consenso”.

Conhecido por suas posições liberais, Barroso considera que o Brasil vive 30 anos de estabilidade institucional e que é preciso preservá-la. “Acho que a Constituição serviu bem ao país e representa um capital político que não pode e não deve ser desperdiçado”, apontou.

Correlação de forças

O deputado constituinte Olívio Dutra defende a construção processual de uma “Constituinte livre, exclusiva e soberana”. “Tem que ter grande debate, ampla movimentação nos fundões do Brasil, nas periferias, nos centros das cidades, bairros, cidades pequenas, escolas, igrejas, é um processo, portanto. Não basta ser de cima para baixo, porque pode ter gente lá em cima com vontade para fazer isso, mas se não tiver ampla mobilização, espalhada, enraizada na sociedade, de baixo para cima, de novo podemos logo ali cair numa farsa de composição de uma Constituinte que não representa o conjunto da sociedade”, avaliou.

Dutra é otimista quanto ao alcance desse processo e à viabilidade de uma correlação de forças mais favorável à ampliação de direitos. “Há uma juventude que tem gana das coisas serem mudadas para melhor e brigam por isso, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o movimento dos trabalhadores que lutam por moradia digna, por educação pública de qualidade, a igualdade, a justiça, a equidade, o fim de qualquer preconceito, eu acho que tudo isso está latente na sociedade brasileira. Por isso mesmo eu não perco a esperança da possibilidade de que se altere, mas eu não me iludo e não iludo as outras pessoas que isso tudo vai se dar num próximo episódio eleitoral”.

Genoíno concorda que é preciso construir um ambiente político para uma nova Assembleia Constituinte. Ele relembrou o processo que levou à Constituição de 1988. “Nós temos que criar uma correlação de forças que facilite isso. E aí depende da luta. Quando a gente perdeu a emenda das diretas, foi um baixo astral total. Perder uma emenda por 17 votos, depois de uma campanha com um milhão na rua, foi uma noite terrível. As pessoas saíram de lá chorando. E depois vai para colégio eleitoral, elege Tancredo [Neves], ele morre e assume [José] Sarney. Aquele período ali foi barra pesada”, relembrou, destacando que um novo processo passará um enfrentamento político-democrático.

Para Genoíno, uma Constituinte teria que discutir questões como a configuração das instituições do Estado, além de garantir que ela não fosse feita por uma visão corporativa. “A Constituição de 1988 produziu uma visão global de país. Eu costumo dizer que o Brasil se mostrou como ele era em dois momentos: na Constituinte, que aparecia de tudo, o Brasil mostrou a cara ali; e no governo Lula, com as conferências, as reuniões, as políticas, aí o Brasil aparece, a mulher, o negro, o pobre, o índio, quilombola. É esse Brasil que quer aparecer que a elite tem medo, que acha que isso é feio, é sub-raça, é um atraso”, criticou.

Um novo debate abriria espaço para rediscutir as bases do Estado brasileiro. Entre os retrocessos recentes que poderiam ser revertidos, estão os limites impostos pelo regime fiscal do governo golpista de Michel Temer, a Emenda Constitucional criou um teto para os gastos públicos por 20 anos, impactando, inclusive, nos gastos sociais.

Parte do processo

A Constituição brasileira é uma das mais extensas do mundo, com quase 65 mil palavras, segundo levantamento do Comparative Constituition Project. A Carta Magna do Brasil também é uma das que mais garante direitos no texto constitucional, com um total de 79, ficando entre as dez primeiras da lista. Para o jurista Pedro Dallari, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a amplitude reflete o momento político da época. “É fruto da enorme demanda da sociedade que saía do período da ditadura e, portanto ansiava por ver na Constituição regras que refletissem suas demandas. Tem especialistas que dizem que isso é um defeito, eu não acho. Não acho que seja defeito nem que seja virtude, é consequência da lógica do processo político de como se deu a transição”, apontou.

Nesse sentido, ele também não avalia que a quantidade de emendas sejam um problema. “Se a Constituição é muito longa e muito detalhada, a mudança da realidade naturalmente leva a necessidade de ajustes, então isso gerou muitas emendas constitucionais. Portanto isso não é um problema em si. Obviamente o que tem que se discutir é a substância dessas emendas”, apontou.

Já o ex-ministro do STF Ayres Britto, em entrevista à TV Senado no mês de agosto, fez críticas à quantidade de emendas à Constituição. “Tem sido mexida com uma fecundidade de hamster”, declarou. Ele é um defensor da Carta como está hoje e acredita que ainda é necessário efetivá-la antes de um novo processo. “Se temos andado mal das pernas, é porque temos andado de costas para esta Constituição”.

Dallari não se entusiasma com a proposta de uma nova Constituinte. “O parlamento tem revelado uma hegemonia conservadora. Se se instala uma constituinte, qual é a grande diferença entre a Constituinte e fazer emenda constitucional? Em geral, é a maioria. Em uma emenda, para se mudar a Constituição atual, são necessários três quintos dos votos. Para se alterar alguma constituinte, seria necessário a princípio maioria absoluta só”, comparou. Ele acredita que direitos fundamentais atualmente consagrados na Carta Magna poderiam ser ameaçados.

A pesquisadora Caroline Bauer, professora do departamento de história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), avalia que o texto constitucional deveria ser o “mais perene possível” em democracias, pois guardam “princípios compartilhados irrevogáveis”. Ela acredita que 30 anos podem ser insuficientes para ressignificar processos. “Como a nossa Constituição dá conta de muitos temas, a gente teria que fazer uma avaliação para cada um deles nesse sentido, de ver se tem adequação com determinadas demandas ou realidades atuais”, apontou.

Bauer avalia que é preciso pensar sobre a necessidade de mudanças a partir “do jogo político e de alternâncias de grupos políticos no poder que consideram que a Constituição não dá conta dos seus interesses. O texto constitucional não serve para isso”, criticou. Ela acredita que ainda há desconhecimento sobre o documento atual e que ainda é preciso avançar na sua regulamentação.

Sobre os desafios da regulamentação, ela aponta como exemplo a tipificação do crime de tortura. “Ainda que o Brasil tenha sido, nos anos 1980, signatário de diversos tratados internacionais condenando a tortura, e isso esteja presente no texto constitucional como a prática violadora dos direitos humanos, a tipificação só acontece em 1997”, exemplificou. O texto constitucional tem hoje 119 dispositivos aguardando regulamentação, para os quais 28 ainda não foram apresentadas propostas.


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